A Grã-Bretanha celebrará neste verão (inverno, no Brasil) o jubileu de
uma instituição que está durando mais tempo do que qualquer um
imaginava, que transcendeu as fronteiras do país, e que se mantém ainda
hoje como uma fonte constante de alegria no mundo
Estou me referindo não à monarquia britânica – cuja rainha Elizabeth 2ª
também celebra seu jubileu – mas ao 50º aniversário do primeiro show
com a formação clássica dos Beatles.
Também há cinquenta anos foi feito o primeiro registro fotográfico de
John, Paul, George e Ringo. A imagem foi feita em um ensaio à tarde,
poucos dias antes de 22 de agosto de 1962 – a data do primeiro show dos
Beatles.
Coloco esta foto ao lado de outra imagem importante, feita no dia 22 de
agosto de 1969 – exatamente sete anos depois. Este é o último registro
dos quatro Beatles juntos. Existe algo sombrio, trágico ou até meio
cósmico sobre os Beatles – foram sete anos de fama imediata, e longas
décadas de tremores secundários.
Anos 60
Esses dias, vi um vídeo na internet sobre "coisas que as pessoas nunca
falam". Um dos itens da lista é: "eu não gosto dos Beatles". Todos gostavam dos Beatles antes, e todos gostam deles ainda hoje.
Meus
filhos discordam de mim quando falamos sobre os Rolling Stones, e eles
não entendem o jeito "metal farofa" do Led Zeppelin (por que eles cantam
gritando com sotaque americano?). Mas para meus filhos, os Beatles são tão incontestáveis quanto a lua. Simplesmente algo que não para de brilhar. É um fenômeno.
Se a geração da época dos Beatles ainda estivesse
escutando músicas de 50 anos atrás – como nós hoje – eles estariam
ouvindo canções da época da Primeira Guerra Mundial, o que é impensável. Então, por que os Beatles continuam atuais?
A explicação que se ouve geralmente é que eles refletiam bem o seu
tempo e eram um espelho para uma década que todos ainda reverenciam – os
anos 60. Mas o quanto mais eu os escuto e mais o tempo deles vai ficando no passado, mais fundamental o som deles se torna. Fico pensando se grandes personalidades do mundo pop não têm uma relação inversa com a sua própria época.
Charlie Chaplin, que é um dos poucos artistas com este tipo de
estatura, criou sua obra depois da Primeira Guerra Mundial – a era dos
automóveis e da metralhadora, um dos períodos mais conturbados da
história da humanidade. Mas seu trabalho era baseado no teatro vitoriano e na prosa de Charles
Dickens, evocando uma época anterior ao seu tempo. "Luzes da Cidade" e
"O Garoto" mostram a Londres dos anos 1890, não a Nova York dos anos
1920.
Eu acho que o mesmo acontece com os Beatles. Eles não eram
provocadores. Seu grande tema é a infância perdida, e o que fazer diante
de um mundo sério e austero, mas organizado e seguro da Inglaterra onde
eles cresceram.
Disco "Yesterday and Today", de 1966, que mostrava os Beatles posando com bonecas e pedaços de carne causou polêmica. Seus trabalhos mais duradouros – como "Strawberry Fields" e "Penny
Lane" – contam histórias como a de um menino solitário em um jardim que
lhe traz conforto, ou de uma rua animada de Liverpool, onde um garoto
esperto e sociável vê o mundo ao seu redor. Sons estranhos do passado – como bandas de metais – adornam as músicas
dos Beatles, como ilustrações em um livro infantil. Sexo é um tema
presente no primeiro disco, mas é raramente tratado nos demais álbuns.
Choque de opostos
A música dos Beatles é duradoura sobretudo por causa do poder da colaboração entre opostos. John tinha profundidade. Ele entendia instintivamente o que separa um grande artista de um
grande agente de entretenimento. O artista procura surpreender e até
chocar seu público. Paul tinha compreensão, sobretudo do aspecto material da música, e
sabia instintivamente que a arte que surpreende mas não consegue
entreter é mera vanguarda.
Nós percebemos a diferença quando os ouvimos após a separação: Paul
tinha milhares de melodias maravilhosas, mas ambições artísticas
esporádicas; John tinha muita ambição artística, mas só um punhado de
melodias. Mas naqueles sete anos que a profundidade de John encontrou a
compreensão de Paul, nós todos subimos o Everest (que por sinal era para
ser o nome do último disco dos Beatles).
O dom dos Beatles era o dom da harmonia, e sua visão sempre foi essa.
Harmonia – as vozes se entrelaçando em uma canção – ainda são o nosso
símbolo mais poderoso de um mundo melhor, onde os opostos cantam juntos
como se fossem um só. É por isso que até mesmo Bach e Handel terminavam suas melhores obras
com corais – para nos alegrar e encorajar com sons de um mundo harmônico
onde nós ainda não chegamos, mas o coral já atingiu e agora está nos
chamando.
A arte nos faz sentir vivos e conscientes, mas raramente ela nos faz
sentir feliz. Cinquenta anos depois, a música dos Beatles ainda
sobrevive porque eles nos dão um dos sentimentos mais incríveis: o de
que a felicidade é algo que cabe na nossa mão.
Adam Gopnik - Escritor e ensaísta americano